Crítica

Há 35 anos vi
A Hipótese

— Por MÁRIO CAEIRO

Há para aí mais de 35 anos, vi A Hipótese, de Pinget, um monólogo de que não me lembro de nada a não ser que se tornaria inesquecível. A coisa aconteceu no que tínhamos acabado de batizar ‘CH-CA-DI-NHAS’ da ESBAL – um barroco lanço de escadas no antigo convento (a plateia eram os degraus). O ator ficou amigo para a vida, um tal de Diogo Dória.

Ao longo destas décadas, voltei bastas vezes a ser arrancado ao quotidiano (de estudante, noctívago, pai, professor) pela palavra tornada corpo. Na Trafaria, cheguei a ver Cristo a pedir um cigarro ao parceiro de cena e depois a fumá-lo no mais constrangedor dos silêncios que alguma vez senti, sentado nos degraus apocalípticos do antigo Presídio, e isto depois de cenas de sexo ao vivo à séria e antes de sermos – nós, público – literalmente empurrados, forçados, escorraçados de salas mijadas para o inesperado paraíso: um miserável e sublime pátio traseiro em que o dragoeiro no centro foi silenciosa testemunha da nossa viagem ao inferno colonial. Lembro-me lá do texto...!

Em Almada, ali próximo, umas décadas depois, Uma ilha flutuante foi um universo paralelo em não sei quantas línguas, um alucinação psicótica num cenário de interior burguês e em que a dada altura há uma fulana que, ao cair de frente contra o chão, ali fica uma eternidade a baloiçar, com a rigidez mecânica e absolutamente hirta (juro!) de um cavalo de pau. Poucas horas, dias depois (?), o Festival levou-me a mais um texto de que não me lembro de nada a não ser que decorria nos interiores de uma grande casa. Lembro-me da orquestração dos corpos na cozinha e das imagens (filmadas em tempo real), e – ai, isso sim – de não conseguir fechar a boca (de espanto) ao ver aquela Menina Júlia cronometrada ao detalhe infinitesimal pela tekne alemã, a tecnologia de topo sublimando-se para deixar que a alma humana se visse ao espelho. Ah, e de um espetáculo começar de forma killer quando Hedda Gabler abre o cortinado de seu salão e com toda a energia de uma manhã imortal exclama: Oslo! (E nós na… Casa da Cerca, o skyline de Lisboa em frente).

Também me lembro de estar a morrer de sono num Bestia del Stile na Culturgest e aí ser brutalmente iluminado, devassado, por um batalhão de projetores, durante uma eternidade, o elenco sentado na boca de cena à (des)conversa (e mais não digo porque o que veio a seguir foi tão curto quanto marcante – ok, eu conto: súbita desaparição do banho de luz e aquele negro muito negro, e nell um espantalho de palha a arder!). Lembro-me lá dos textos, das companhias, dos tradutores, de quem em concreto terá estado/a sentado/a ao meu lado em mais séance

Teatro é tão sonho. Lembro-me de um Sonho inesquecível da Cornucópia (a jogar fora de casa), de um alcoólico Mário Jacques a revelar-nos (a nós, aos espetadores, que não aos familiares), numa cozinha ali para as bandas da Graça, a genial mecânica para aceder à vodka (os copos, de tão cheios, ficavam inocentemente vazios)... Lembro-me de uns inenarráveis coturnos na original Casa da Comédia… De tais memoráveis experiências como espectador não me perguntem mais nada, mas que o texto arrasou, arrasou. Desapareceu e ficou enquanto memória de um momento. Mishima, Strindberg, Pasolini, Schiller, Lorca, percorrerem-me os poros, quer eu quisesse, quer não.

My point. Ir ao teatro é uma estupidez. Esquecemos tudo, sobretudo (sic) o texto que, precisamente, mais do que o tudo o resto, nos arranca ao quotidiano na durée da co-presença. [Única exceção que me ocorre: uma lágrima de Mona Lisa a deslizar rosto abaixo de Lúcia Sigalho, no momento certo – no gelo da Margem Sul, mas lá está, não havia palavra!] O texto teatral de que nos esquecemos memoravelmente é o que destoa do discurso do mundo. É desse mundo testemunho e détournement. Lá está, lembro-me de Cristo a pedir um cigarro depois de um longo silêncio, tão redentor quanto sepulcral, MAS NÃO ME LEMBRO DAS PALAVRAS QUE UTILIZOU! Ou seja: lembro-me de estar atento como um tarado do ténis a ver uma partida, 20’+ de conversa fiada-trocada entre três actores com pistolas apontadas uns outros, num noir cómico do Miguel Castro Caldas… e apenas me lembro que foi a palavra que me fez suster a respiração, não a iminência do tiro. (Até porque, se esse tiro ocorresse, acabar-se-iam os dilates). E lembro-me de delirar com o cinemático rol de imagens que sucederam – mas não me lembro das imagens invocadas. E claro, lembro-me lá sequer da porra do nome do espetáculo.

Este arrazoado filisteu vem a propósito do labor – topem-me este nome – d’O Fim do Teatro. O mentor, diz que encenador, é Pedro Saavedra, que acredita ser parente de… Cervantes. Vou ali já venho. Agora, que os seus textos, enquanto duram, são eternos, ai isso são. E há imagens que em cena os vestem. E vozes que os despem para nos serem oferecidos de sacrifício à memória.

Do anterior espectáculo, há meses, já mal me lembro. Tinha a ver com Aquilino Ribeiro. Mas teve duas (!) coisas tipo ‘toma lá vai buscar’. Uma abertura para um monumental lençol branco a cobrir os móveis de uma cena, e que ao subir foi teatro de topo logo aos primeiros momentos (‘desbararando’ um efeito que tantos outros criadores deixariam para o fim, tal seu previsível e memorável impacto visual). E depois um beijo gay absolutamente ébrio de de amor e entrega, de enleamento entre almas (deixando a milhas o planfletário, o piscar de olho, o ativismo da treta, etc.) Quanto ao texto en soi même, espécie de conto de fodas a invocar… lobos a uivar – vivi-o como um extraordinário mergulho em processos mentais. Meus caros, é isto a Literatura. É na literatura que se lê o Humano na aventura da individuação, através da palavra e (sobretudo) da frase que no registo multíplice da voz (o que no teatro pode ser explorado como em mais nenhum lado) uma fundamental farmacologia para a pornografia vigente. A literatura teatral é uma porta que, quando se abre, até dá pena fechar. É isso que torna espetáculos de três horas memoráveis, mesmo que não nos lembremos da porra do texto.

Blá, blá, blá... vem isto a propósito de A República Alexandrina, que esteve em cena há um par de semanas. Vi-o no singelo Teatro da Malaposta, com três amigos, cada um nós retendo do espectáculo coisas muito diversas, e opiniões francamente opostas. E foi nessa rara discrepância, nessa capacidade de uma peça gerar desde a veneração à indiferença, passando pela constatação de pontos fortes (a qualidade da encenação foi o único ponto em que concordámos os quatro), que este piccolo texto germinou.

Já me esqueci, claro, de quase tudo. E do texto então… Mas durante a sua exposição – para mais no melhor lugar da sala – fechei várias vezes os olhos para saborear as falas. Senti-me arrebatado para um sonho, enlameado num pesadelo, arrastado para a alucinação e ao ritmo da terrível realidade da palavra (quando é) dita. Palavras NÃO as leva o vento. Elas ficam no corpo (os discursos, esses sim, ficam na mente).

Mas como vi a peça há relativamente pouco tempo (!), é como se as palavras fossem a dimensão inconsciente de um rol de imagens que subsistem à saudável limpeza da memória. Nova abertura de genial precisão cénica, com a personagem a entrar na nossa vida através do voyeurismo mais quotidiano; uma estruturação do espaço – tripartida, meta-brechtiana – que constituiu uma lição sobre o que é o teatro face à vida (com a noção de bastidores excepcional- e enfaticamente posta em cena); no decorrer uma sensação de que cada cena se foi sucedendo como num longo episódio de delírio.

Porra! Cheguei cá! Aqui quis chegar, depois de querer rever o espectáculo na minha escrita tarada, mas sem saber por onde começar. Aliás, tem piada. Os inícios, no Saavedra, são absolutamente on point. Já os finais, uma luta. Ditto. Por ele. Já lá vou.

O que quero sublinhar na minha experiência é o fato de através deste espetáculo ter sido colocado em transe, em suspensão, num trânsito verbal muito para além do estritamente narrativo, funcional, até poético. Desenlace issues? None. Todos esses aspetos da retórica teatral foram, na minha sensibilidade, colocados em suspenso – MAS ESTANDO LÁ SEMPRE QUE NECESSÁRIO, CIRURGICAMENTE – para que o foco de permitir ao espectador surfar aquelas ondas de palavras tivesse instantes de ‘virar a página’ ou ganhar fôlego.

A voz do Pedro será única – como a de todos nós, como as das personagens. Mas isso tem sido transmutado numa linguagem teatral que funciona – lá está – como experimentável backstage da palavra como acontecer da mente em diálogo. No palco, uns com os outros; de cada personagem consigo própria; do autor com o espetador (e futuro leitor); do autor consigo próprio; do espetáculo com o momento.

Ora, ver A República Alexandrina constituiu para mim, muito francamente, uma experiência profundamente surrealista, e uso a palavra como elogio e muito conscientemente, porquanto momento-chave da modernidade (arrumado como caixa de truques fáceis pela História e hoje muito esquecido na praxis dos criadores). Como em raríssimos espetáculos – hehe, não me lembro de nenhum – o ver é por estas (b)andas também um ler e, nessa radicalização da convergência, optei, na noite em que fui ao Olival Basto, a dado momento por nem sequer seguir a narrativa e deixar-me meramente enlear pela musicalidade do que ia sendo dito. Um chavão me ocorre: Literatura Total. E não é etiqueta, é até frágil metáfora para relatar aqueles corpos e vozes no seu terrível – e, pontualmente, sublime – encenar de sua miserável (no sentido de humana, mais uma vez) performatividade.

Foi um espetáculo fácil? Não creio. Fútil? De todo, foi violentamente preciso quanto a vários logros da contemporaneidade (não me peçam para os enumerar). Inesquecível? Bem, para ter gerado este desabafo de crítico de teatro na gaveta, NÃO! Foi um pequeno acontecimento, do tamanho da morte, à escala da vida (há uma cena [de tortura] em que o ator [não em lembro do nome] materializa estas dialéticas). Dando corpo ao manifesto. E essa trip em que a palavra, ao transmutar-se em cena, nos enleia, é uma lição: o palco como prolongamento da Assembleia do público, os atores como frágeis arquétipos de nossas próprias derivas mentais, e… lá está: tudo em nome de uma inolvidável experiência do texto. De que, aqui entre nós... não me lembro.

Ps.: sei que D. Quixote não se zanga se eu citar um diálogo que tivemos, via sms, no final da série de espetáculos realizados. Saquei-o, ‘à la Assange’, das redes sociais:

PS
Alterei o fim pífio. Verás em vídeo

MC
Yesssss. O espetáculo é genial. Merece

PS
O bel aparece com o mapa e cortei as coisas que eles liam do papel. Agora são animais e terminam em coro a dizer uma parte do texto da tortura.

Estar a entrar como actor permitiu ver de perto o problema ;-)

Digam-me lá. A coragem de olhar o teatro como dimensão do dialogismo aquém-e-além palco, espelho doentia- e pedagogicamente distorcido de um momento cultural; como investigação-ação na paisagem apocalíptica de uma civilização a dar a últimas (e as primeiras); como fé na alquimia da luz, do adereço, do corpo-ator, da palavra que se aperalta para constituir monumento à oralidade... meus caros e caras, não é para qualquer um. Posso esquecer-me disto tudo, e já nem me lembro do que constava no manifesto no fim realmente pífio que este espetáculo genial chegou a ter; mas faço questão de ir ao próximo espectáculo d’O Fim do Teatro. A arte, sem a gestação deste tipo de espaço para o público no público, é mero… product placement.

Bem. O presente texto, por alguma razão oculta no seu advento, acabou ultrapassado pelo tempo. As quatro primeiras peças do Pedro Saavedra estarão brevemente disponíveis em livro. Fica o lembrete. O resto é conversa.

Links para os espetáculos referidos

publico.pt/2000/04/21/jornal/duas-hipoteses-de-teatro-142927
[antevisão da reposição, dez anos depois, do espetáculo original]
publico.pt/2000/09/27/jornal/o-anticristo-desceu-a-terra-149262 [crítica]
criticsatlarge.ca/2016/06/cracked-christoph-marthalers-une-ile [crítica]
dahr.no/projects/hedda-gabler
dn.pt/arquivo/2006/pasolini-inedito-na-culturgest-640590 [notícia]