Entrevista
ao Autor

O espectáculo chama-se O Fim do Teatro mas trata de uma profusão de fins, nenhum dos quais acaba mesmo. É faustoso e mefistofélico, sobre fazer e parar de fazer teatro. Mário Redondo, Mia Tomé, Miguel Ponte, Rui Miguel e Sofia de Portugal encenam este lento terminar, em cena no Centro Cultural Malaposta a partir de dia 5 de Dezembro. Na cadeira dupla de encenador e dramaturgo, senta-se Pedro Saavedra, que fala sobre fins e princípios, teatro e quem o faz.

— Por GIL SOUSA

 

COMO SURGIU O FIM DO TEATRO?

Fui ver um espectáculo do Tiago Rodrigues chamado Sopro. E pela primeira vez desde há muito tempo eu senti qual é que era, de uma maneira estética e filosófica, a finalidade do teatro. O teatro é uma arte estranha, porque sempre foi considerada pelas pessoas que o fazem como uma arte em crise. E eu questiono-me se a energia que despendemos a criticar a nossa arte não seria mais bem empregue a criá-la, o que, para mim, implica pensar sobre a sua finalidade. Não a finalidade como um acto teórico, académico ou crítico, porque não sou nenhuma dessas coisas, mas criativamente, como uma história. E quando estava a pensar nisto apareceu-me esse título: O Fim do Teatro.

NÃO PRECISAS DE UMA LINGUAGEM TEATRAL ESPECÍFICA PARA QUESTIONAR O TEATRO ATRAVÉS DO TEATRO? UMA LINGUAGEM TEÓRICA, EXCLUSIVA?

Repara: a linguagem teórica existe sempre. Eu não estou desligado das coisas que li, dos espectáculos de que gosto, dos criadores que admiro. Mas um criador que está obcecado com a teoria não está a gastar essa energia com a criação, e podia atingir o mesmo objectivo de questionamento da arte através da arte em si.

Eu não sei que nome dar a esse teatro, porque já ouvi tantos: teatro intelectual, teatro elitista, erudito, de investigação, enfim, o teatro que não dá dinheiro – este último acho que é consensual. Este que não é feito para que o público goste dele, que é feito porque os seus criadores entendem que devem dizer aquilo, tem de facto uma componente de questionamento da realidade que habitamos. Isto para dizer que a explicação que tens para o que fazes é menos importante do que fazeres. Que o essencial é sentires que o que fazes tem razão de ser. Se eu escrever um texto porque acho que é o texto que os teatros vão querer programar, ou que as pessoas vão querer ler, eu não estou a ser um criador, estou a ser um vendedor.

COMO FOI O PROCESSO DE ESCRITA, CAPTURAR TODAS ESTAS IDEIAS E PÔ-LAS NO PAPEL?

Eu queria pôr uma companhia de teatro numa situação estranha. Imaginei pessoas habituadas a um teatro clássico, elegante, e quis pô-las na rua. Uma diva com um casaco de peles, perdida num bairro social. E originalmente era para ser um espectáculo passado na rua, mas descobrimos que estávamos, tínhamos sempre estado, no teatro.

Depois apareceu-me o Director desse tal teatro. Vem do Ministério da Cultura, onde lhe disseram que o que ele faz não interessa a ninguém, que nunca mais vai ter apoios, que toda a história da vida dele não serviu para nada. E ele insiste em fazer mais um espectáculo. É a velha história do ‘Vocês só se queixam, não têm dinheiro, não têm condições, mas também não param de fazer coisas.’ Ele é a pessoa que vamos ser todos um dia, quando formos velhos e sentirmos que os outros não nos compreendem porque vimos de outro mundo.

Apareceram mais pessoas. Dois jovens, que vêm de um mundo mais perto do actual, que respeitam menos o ritual do teatro. Acrescentei o Técnico mais tarde, que é assim uma figura racional, é o Mefistófeles de Fausto, que apresenta o mundo previsível, que diz que as coisas não mudam, que não podes ser idealista. E depois lembrei-me de uma sexta personagem, que afinal também esteve sempre presente, que era o Autor.

ESSE AUTOR É UMA FIGURA VIOLENTA, POSSESSIVA. É ASSIM QUE TE SENTES, COMO CRIADOR?

Não, não é isso; não sou eu. Ou melhor, eu sou todos. Este Autor é uma autoridade, e uma autoridade que se impõe a qualquer um de nós. Não é verdade que eu como encenador sou livre. Há limites na interacção, limites nas possibilidades do teatro, limites nas minhas capacidades. E interagir com estas autoridades e limites é uma forma de nos questionarmos a nós próprios, de olhar ao espelho. E, de facto, esta exploração de uma ideia que eu tive, em que eu acredito, através de outras pessoas, é cruel, é autoritária. E o Autor representa esse espaço.

COMO DRAMATURGO TENS UM ESTILO MUITO PRÓPRIO. ACHEI INTERESSANTE VER QUE O TEXTO NÃO TEM FALAS NEM DIDASCÁLIAS, É QUASE PROSA, QUASE UM MONÓLOGO. PORQUÊ ESSA DECISÃO?

Tirando algumas excepções, a dramaturgia e os dramaturgos sempre foram considerados uma parte pobre da literatura. Isso está a mudar, mas não ao nível do leitor, são raras as pessoas que compram peças de teatro pelo prazer de as lerem. E acho que isso também tem que ver com o fenómeno gráfico da apresentação do texto. O texto em bloco, misturando os discursos directo e indirecto permite que o leitor navegue dentro da sua cabeça de forma muito mais livre. E é muito mais prazenteiro para mim usar descrição em vez de didascálias. Ainda só vou em dois textos escritos neste formato, mas para os actores tem sido uma boa experiência. Têm uma liberdade diferente.

“A escrita é um acto gráfico. Ou seja, a minha primeira relação com a ideia é a forma como a vejo. E uma coisa que eu acho arrepiante, na escrita para guião, é que para ser prática e outros terem facilidade a lê-la, eu que estou a escrever tenho grandes dificuldades com essa explanação gráfica.

E ESSA CONFIANÇA NÃO ADVÉM DA TUA PRESENÇA, DO TEU PRIVILÉGIO DE SERES DRAMATURGO E ENCENADOR?

Não, não. Eu comento pouco o que eles dizem. As entoações apareceram de forma espontânea, o que me deu uma grande segurança em relação ao texto. Acho que um bom texto de teatro não precisa de um bom encenador. Esse é o meu desafio. O que é cruel, visto que depois vou eu encenar. E posso vir a passar por alguém um dia querer pegar nisto, ler o texto, e dizer-me, ‘Pedro, isto é uma merda, não consigo encenar.’ É a vida. Da mesma forma – isto é um defeito meu – que acho que explicar as coisas as estraga. Que um bom livro não precisa de ser dissecado, especialmente por um intermediário. Há coisas que tu sentes com o corpo, com a tua essência, e sentirás sempre de forma completamente diferente da minha. Que bom! E num espectáculo isso é potenciado por quem lê poder habitar aquela ideia da forma como a sente. Aí, a maneira como apresentas a ideia faz toda a diferença.

COMO FOI REGRESSAR A ESTE TEXTO AO FIM DE UM ANO E MEIO?

Fácil. Não estou a dizer que fiquei surpreendido, mas foi fácil. Estamos a falar de uma coisa que foi ensaiada durante três semanas, com um texto a que eu fiz poucas alterações. E quando voltámos e começámos a ler, estava lá tudo. Claro, foram precisas afinações, palavras que não funcionam, frases de que gostas muito mas que claramente estão a mais, etc. Mas um ano e meio depois da primeira apresentação as personagens ainda existiam dentro dos actores. Uma das melhores partes deste processo é eu aperceber-me de que não está a ser preciso dirigir, só orientar. E isso dá-me um gozo muito grande, sentir que o texto, as palavras e a ideia, se sustentam sozinhas e perduram.

E POR FALAR EM REGRESSOS, ESTÁS DE NOVO NUM PAPEL PRINCIPALMENTE DE CRIADOR DEPOIS DE BASTANTES ANOS COMO PROMOTOR E PROGRAMADOR. COMO ESTÁ A SER A MUDANÇA?

É engraçado, durante muitos anos eu só me considerava artista e mais nada. Essa é uma pergunta difícil… Há coisas que nós somos e que não podemos deixar de ser. Às vezes somos muito estúpidos acerca desta coisa que sentimos. Porque ela é complicada, é difícil. Não leves a mal a analogia, mas suponho que seja em parte como alguém que não consegue admitir a sua identidade sexual, alguém que sente que por gostar de pessoas do mesmo sexo tem um problema. Tem vergonha, sofre sempre que se apaixona e corre o risco de ter uma vida horrível por não se aceitar como é. Mal comparado, mas eu sou genuinamente um gajo que tem ideias para teatro. Artista, actor, who cares? E sou assim desde um espectáculo que fomos forçados a fazer no secundário. Tivemos uma ideia, assim uma coisa mega contemporânea, sem palavras, que foi muito bem recebida. E eu de repente apercebi-me de que me sentia confortável, como se estivesse em casa. E de que me andava a enganar com o que achava que queria fazer, que estava mais virado para as ciências. Mais tarde, por mais coisas que tu faças, há sempre algo que te leva novamente a esse sítio de conforto.

Essas designações são só a minha aceitação da minha natureza como uma pessoa que gosta de contar histórias, seja como actor, em conversa, a fazer locuções, o que seja. É quem eu sou. Por mais que penses que é uma profissão difícil – e não pelo dinheiro, não, é pela sensação constante de injustiça, a sensação de que faças o que fizeres nunca te vão dar o que achas que mereces…

POR RAZÕES POLÍTICAS, ECONÓMICAS, SOCIAIS?

Por razões da própria profissão de artista, da insatisfação constante. Acho que é igual em todas as sociedades, em todos os sistemas. No paleolítico era o gajo que estava a desenhar na parede da caverna, depois chamava toda a gente, e diziam-lhe, ‘Tá, OK, mas olha, nós temos de ir caçar um mamute ou morremos à fome. E olha que não tens ido caçar connosco, se calhar não comes hoje.’ É uma profissão intermitente, não existe lógica nenhuma entre convidarem-te para fazer coisas ou não. Faz parte.

“Um dos dilemas do percurso artístico é que mais tarde ou mais cedo vais ter de mostrar aos outros o que andas a fazer. E tens de aceitar que eles não vão gostar nada, e que ainda assim tu vais continuar a gostar. E vais pensar, ‘Olha, pachorra.’”

FALA-ME DO PRÓXIMO ESPECTÁCULO. DEPOIS D’O FIM.

A estrear em Abril vem Os Princípios do Novo Homem. E fiz de propósito: tinha escrito sobre fins, agora queria escrever sobre princípios, que é outra palavra polissémica. Uma das coisas em que tenho reflectido muito é este antagonismo para com a história do teatro. Contra as coisas que nós há 30 anos achávamos fundamentais e agora achamos supérfluas. Essa questão do apagamento, de querer eliminar tudo o que foi feito no teatro pós-25 de Abril, irrita-me. Porque os que fizeram o pós-25 de Abril o que quiseram também foi apagar o que tinha sido feito antes. E se eu estiver sempre a apagar o que o meu pai fez antes de mim eu vou estar sempre a começar do zero. Não entendo isso. E como sempre gostei muito de ficção histórica e de disrupção, achei que era uma boa maneira de questionar esse princípio.

Comecei a pensar em períodos históricos que fossem interessantes de rever através da disrupção do hoje. E por acaso li um artigo do El País sobre os anos que o Miguel de Cervantes passou em Lisboa, que coincidem com a chegada do primeiro Filipe (segundo de Espanha) a Portugal. Fui pesquisar sobre este período, 1581-1583, de uma Lisboa completamente diferente e uma sociedade absolutamente extraordinária. Era o centro do mundo Ocidental, um mundo que se estava a redescobrir em termos de fronteiras, em que os povos e as pessoas se multiplicavam e se congregavam em Lisboa, que era um centro económico. Era uma cidade multicultural, muito mais do que é hoje. E existe uma descrição dessa sociedade feita por alguém que não sei o que fez cá, mas que mais tarde veio a escrever o Quixote. No espectáculo, ele e o servo querem pedir uma mercê ao rei. E estão à espera de ser recebidos, sem saber quando, ou se, isso vai acontecer.

É MUITA PESQUISA PARA DEPOIS ABANAR TUDO.

Sempre admirei escritores que escreviam com dicionários de sinónimos e enciclopédias. E hoje rapidamente chegas a informação interessantíssima. Por exemplo, Cervantes esteve num cárcere na Argélia onde conheceu, entre outros, o Manuel de Sousa Coutinho, que viria a inspirar o Frei Luís de Sousa. Está tudo ligado. Cervantes descreve a cidade mais interessante do mundo e fazer essa pesquisa, perceber como ela era, permite-me seguir caminhos muito mais ricos. E dá-me um prazer tão grande. Agora, não devo mentir. Ou, se mentir, devo mentir com estilo.

FAZER TEATRO, PORTANTO.

Essa é daquelas expressões que eu sei que não são correctas mas de que gosto muito. No outro dia ouvi alguém dizer que fazer teatro é construir um edifício. Mas eu gosto à mesma. É como fazer amor. Também tive um professor que dizia ‘O amor não se faz, o amor constrói-se!’ e estava completamente errado, não sabia do que estava a falar. O amor e o teatro fazem-se. E essas brincadeiras linguísticas fazem parte da piada de ter um cérebro. Idealizares coisas que não existem e, através do princípio da verosimilhança, fazer com que pareça real. Esse é o meu trabalho.

E É O PROPÓSITO DO TEATRO?

Acho que o propósito é obrigar-te a pensar. É o propósito da arte. Uma arte que não te faz questionar a realidade que habitas não serve para nada. Já viste o luxo que é deixares-te pensar desligares-te do mundo durante duas horas, e mais, desligares-te do telemóvel. É quase religiosa, essa parte, é como um padre na missa pedir-te para desligares os pensamentos pecaminosos. E estás ali sentado, no escuro, a passar por uma experiência que não controlas, que não sabes para onde te vai levar… a troco de quê? A troco da verdade. Os objectivos do teatro podem ser muitos, mas têm de começar pela verdade, por aquelas pessoas estarem realmente ali, a comunicarem coisas em que acreditam. E acho que o público sente isso. Podes conseguir enganá-lo uma, duas vezes escrevendo coisas que achas que as pessoas querem ver, mas o mundo não é tão racional. O mais importante é uma ligação emocional entre quem está ver e quem está a representar. Aquilo que te entusiasma quando vês um filme ou uma peça é imaginares-te lá, seja como herói, vilão, ou vítima, mas seres tu, sentires como essas figuras.

“O propósito do teatro, e pode ser o da vida, é um gajo estar sempre apaixonado. Pelas coisas, pelos momentos, refeições, conversas, pessoas. E para teres isso tens de te disponibilizar. Para quem cria, a única forma de lá chegar é fazendo.”