Texto de apresentação do livro, no Folio (Festival Literário Internacional de Óbidos)

Por Paula Garcia, a 12 de Outubro de 2022

Da esquerda para a direita: Miguel Ponte, Mário Caeiro, Paula Garcia, Pedro Saavedra e Sónia Rodrigues.

A escrita de Saavedra é uma espécie de Calvinball. Todos se devem recordar da banda desenhada de Bill Waterson, em que um miúdo de seis anos e um tigre falante inventam um jogo, cuja única regra é ser reinventado à medida que se joga. Em Saavedra, parece-me que acontece isso mesmo: o jogo dramatúrgico vai sendo reinventado à medida que progride, muito embora todas as suas partes continuem a coexistir em interdependência umas das outras, formando sempre um sistema organizado. Nesta escrita, não se encontra uma deriva exploratória de vários estilos artísticos, misturados para uso pós-moderno, como diria o outro, mas encontram-se importações de outros domínios artísticos que são reintegrados na peça como coordenadas teatrais, sendo a principal coordenada, a literária.

Estas peças chegam-nos sob a forma de contos-puzzles que, como o próprio autor refere numa entrevista a propósito de uma das suas peças A República Alexandrina, integram discurso direto e indireto. Nelas pululam sobreposições de ações e de diálogos e também nelas o conceito de personagem é largamente explorado e francamente testado, o que poderá causar alguma ansiedade aos atores que as interpretam. Por exemplo, em Simão Solis, uma peça que parece discorrer sobre o pesadelo recorrente, que os atores têm, de não conseguirem entrar em cena na deixa certa, o problema Pirandelliano da personagem viva - saída do génio do autor e materializável por artes mágicas versus as possibilidades interpretativas dos atores que ficam sempre aquém da ideia original do autor -, é resolvido na biografia ficcionada do protagonista: o velho ator.

Este actor velho descrito pelo próprio como merecidamente sempre secundário e sempre invisível (SAAVEDRA, 231), o que os ingleses chamariam o “walking gentleman”, ou menos que isso, como é descrito em Macbeth, a walking shadow, a poor player that struts and frets his hour upon stage, and then is heard no more, que nos é apresentado com toda uma biografia complexa que, por sua vez, nos revela que, afinal, a personagem não se trata de um simples ator, mas de uma pessoa ativamente dessubjectivada pelo encenador - outro pesadelo recorrente de alguns atores – com o fim de se transformar numa personagem viva (1) que finalmente subscreveria a obra-prima do encenador. Passo a citar o que reconheço como fala da personagem do encenador: 

Simão, tens de saber que só porque o sentes, não quer dizer que esteja a acontecer. Na realidade, o teu filho não morreu, porque tu nunca foste pai, nem sei bem se o saberias ser. O que aconteceu é que me foste oferecido como subscritor da minha própria teoria dramática. Algo só possível de experimentar com a mais pura das almas. Com uma criatura que não tivesse ela própria desejo ou vontade própria nas suas memórias. Foste-me entregue por uma família desesperada que preferiu entregar um dos seus filhos a um estranho do que mantê-lo na mais imunda e perigosa existência. Sem esse salvo-conduto dos teus pobres pais, hoje serias mais um dos muitos moços perdidos na imundice da nossa civilização actual. Salvei-te para fazer de ti Simão Solis, o herói da minha história. (SAAVEDRA, 2022: 256)

E reitera: 

Simão, não conta para nada o que achamos que somos. O importante é aquilo que as pessoas acham que somos. O importante é aquilo que os outros acham que somos. (Ibid)

Não nos encontramos, portanto, no território da conhecida fala de Nina d’A Gaivota de Tchekov, O que é importante não é ter êxito, nem tão pouco glória, nem nada do que eu sonhava. O que é importante é conseguir aguentar. Saber levar a cruz, e ter fé. Este manual de sobrevivência para o fazedor de teatro, que nos oferece Tcheckov, não tem lugar nestas peças. A questão do poder é tema transversal, recorrente, nas peças de Saavedra, explorada, sobretudo, dentro da dinâmica do senhor e do escravo, dinâmica essa que se presta às relações interpessoais no teatro e que, em Saavedra, constitui matéria dramatúrgica. Os princípios do novo homem, de 2020, a 2.ª criação reunida neste volume, apresenta a sua exploração mais franca. Um mestre perdido e um servo sábio tentam ser reconhecidos e aceites na primeira corte filipina em Lisboa. É inevitável ecoar Tiago, o fatalista de Diderot, nesta escrita que também mistura géneros literários e em que as personagens emergem ou manifestam-se, como partes de um livro para colorir: as partes amarelas são a Olga das Três irmãs do Tchekov, que ligam com as partes vermelhas da Professora e que formam uma mesma personagem em A Morte de Abel Veríssimo (Gosto bastante desta peça de 2021. A que gosto mais, devo dizer, é O Fim do Teatro porque eu adoro pensar que um modo de estar na vida acaba definitivamente para deixar espaço para outra coisa nova, por vir. Isto, por um lado. Por outro, acho arriscado e corajoso pensar em arte, neste caso no teatro, na perspetiva da sua utilidade. Para que é que serve o teatro? Qual é o fim do teatro? E quando? Quando é que é poderemos dizer que esta prática deixou de existir? Que se erradicou?). 

Voltemos à Morte de Abel Veríssimo. A morte é aqui o princípio da vida, gera personagens da terra morta (2). Um filho regressa a uma casa em ruínas, da qual terá sido expulso há oito anos atrás. Nestas ruínas, reencontramos a Olga das Três irmãs já irremediavelmente cristalizada na identidade que repudiava na obra original: Olga é aqui só “a professora”. Também a mana Irina, diria eu, não escapou: a juventude, a paixão, o entusiasmo por um futuro novo rapidamente progride e materializa-se na direção oposta: na mulherzinha do maridinho, preocupada com os seus filhinhos, predisposta com indiferença tanto para o abate frio de cavalos velhos como de velhas amas, enfim, a pouco empática Natacha das Três irmãs:

Estive a pensar e acho que devíamos mandar abater os cavalos, estão velhos, já não dão para carregar, transportar ou arar a terra. Eu sei a estima que lhes tens, mas estão velhos, Abel. Parece que o tempo passou mais por eles do que pelas outras bestas da casa. O tempo envelhece. [...] Também temos de falar sobre aquelas campinas perto da Arada, aquilo era melhor vender, já que ainda pode dar algum lucro, do que ficar para ali a fazer crescer mato e bichos. Meu amor, sabes que vamos precisar de dinheiro para a educação da menina, temos de começara a poupar, ela terá de ir estudar para fora daqui, aqui nada aprende, nada cresce. (SAAVEDRA, 2022: 147)

Como em Tchekov, reencontramos aqui um militar à espera da próxima guerra e o gosto pelo serão de jogos. O tom naturalisto-tétrico intensifica-se também com os diálogos entre o Capitão e a Professora onde escutamos a devoção das personagens à valorização da razão como o caminho para o progresso da humanidade, a importância do estudo das relações que estabelecemos com a natureza envolvente e como esta decide a pessoa que somos: 

Não somos muitos, os que sabemos ler ou escrever, mas estamos todos convencidos de que vem aí uma nova era para a humanidade, uma era de crescimento e paz, uma nova era de oportunidades, onde os nossos descendentes poderão aspirar a uma nova vida, melhor do que a nossa, em que os seus sonhos possam ser realizados. Nosso senhor quer-nos felizes, mas para podermos ser felizes temos de saber em que mundo vivemos e, nisso, conhecer a história é a principal lição. (SAAVEDRA, 2022: 126)

Esta ideia de que o processo de investigação, de conhecimento, conduzirá à felicidade atravessa estas cinco peças. 

Nestas cinco peças são também testados, ciclicamente, os próprios dispositivos teatrais de gestão de expectativa. Várias palavras remetem para o que irá acontecer no palco:

Estamos todos como que à espera que algo aconteça. Acontece. (SAAVEDRA, 2022: 43)

Para mim, nessas coisas da proximidade cortesã, o princípio das coisas é a distância de segurança medida com a proximidade protocolar de um braço humano, mais coisa menos coisa. (SAAVEDRA, 2022: 77) (3)

Reparem na graça com que a personagem se move. Da direita para a esquerda. Da esquerda para a direita. E agora, num salto, faz todos os espectadores focarem-se na sua figura.  (SAAVEDRA, 2022: 116)

Quero que partas daqui, rapaz, e que nunca mais voltes. Este sítio é uma ilusão teatral criada apenas para satisfazer a tua imaginação, na realidade tu não estás aqui. Estás muito longe daqui, e é lá que tens de estar. Gostes ou não, o teu destino está traçado e tu estás a tentar adiar o inevitável. (SAAVEDRA, 2022: 138)

Encontramo-nos no ano da morte escolhida de Godard e, por isso mesmo, tenho revisto alguns dos seus filmes. N’ O Desprezo, Godard apresenta o filme, no filme, com a célebre frase: O cinema, afirma Andre Bazin apresenta ao nosso olhar um mundo que corresponda aos nossos desejos. O desprezo é a história desse mundo. Em Saavedra, também estas personagens que invertem relações de poder, parecem fixar um mundo que corresponde ao desejo do autor: um mundo como uma esperança cristalizada que nunca acaba.

(1) Alusão a J Barrento 2001 “Receituário da dor para uso pós-moderno” in A espiral vertiginosa, Edições Cotovia, Lisboa.

(2)  Alusão ao segundo verso de Waste Land do TS Eliot, na tradução de Gualter Cunha.

(3) É prática teatral, em representações naturalistas, usar a medida da distância de um braço para distinguir se se trata de uma relação íntima ou não.

Referências:

BARRENTO, J (2001) A espiral vertiginosa, Lisboa: Edições Cotovia.

DIDEROT, D (1988) Tiago, o fatalista, trad. João da Fonseca Amaral, Lisboa: Editorial Estampa.

ELIOT, TS (1999) A Terra Devastada, trad. Gualter Cunha, Lisboa: Relógio D´Água.

GODARD, J-L (dir.) (2003) Desprezo, DVD, Universal Studios.

PIRANDELLO, L (2009) Henrique IV, Seis personagens em busca de autor, trad. por S Escobar e M Periquito, Lisboa: Relógio D´Água.

SAVEEDRA, P (2022) O Fim do Teatro, Vol. I, Lisboa: O Fim do Teatro.

SAAVEDRA, P (2022) “Pedro Saavedra-entrevista”. Entrevistado por Pedro Mendes. Coffeepaste. 14 de Janeiro.
<coffeepaste.com/pedro-saavedra-entrevista-3>. [Consulta em 11.10.2022].

SHAKESPEARE, W (2001) Macbeth, London: The Arden Shakespeare.

TCHEKHOV, A (1997) Três irmãs: drama em quatro actos, trad. Nina Guerra e Filipe Guerra, Lisboa: Assírio & Alvim.

TCHEKHOV, A (1992) A gaivota, trad. Fiama Hasse Pais Brandão, Lisboa: Relógio D´Água.

O Fim do Teatro – Vol. I

Um espectáculo de teatro tem a particularidade de ser um momento irrepetível e irreproduzível. Dele, podemos escolher as nossas memórias. Mas o que acontece às palavras que são ditas, por vezes centenas de vezes? Foi desta pergunta que nasceu o primeiro volume de textos, da autoria de Pedro Saavedra, para O Fim do Teatro. No seu percurso enquanto companhia, sentiu sempre esta vontade arquivista de registar, através da fotografia e do vídeo, a forma dos espectáculos, criada para o público.

Num meio onde a interdisciplinaridade, o cruzamento de formas, autorias e intenções são essenciais para a criação artística, o livro torna-se, assim, um meio e uma forma de materializar o que existiu antes do espectáculo, permitindo a outros que tenham acesso ao que fica, depois do efémero. Através do objecto impresso, podemos deixar um legado, como parte de um caminho colectivo da dramaturgia portuguesa contemporânea.

Para este objecto, optou-se um design clássico, tanto na escolha da tipografia quanto na simplicidade do desenho das páginas e na escolha do papel. Alguns pormenores, como a criação de cinco separadores (para cada um dos textos), com personalidades diferentes; as escolhas da capa, que chamam para o conteúdo do livro, apresentando o seu esqueleto sem pudores, na sanguínea cor de fundo escolhida; o formato pequeno que procura uma leitura de intimidade; são tudo camadas de um trabalho de pensamento e minúcia que decorrem das próprias inquietações artísticas da companhia.